Apesar do destaque na nova Lei de Licitações, seguradoras ainda precisam se estruturar para oferecerem até 30% de garantia e o step-in nas grandes obras.
Bastante discutida e aguardada pelo setor de seguros, a nova Lei de Licitações 14.133/2020, publicada em abril deste ano, trouxe a expectativa de impulsionar o crescimento do seguro garantia para obras de infraestrutura. Uma das inovações da lei é a possibilidade da exigência do seguro garantia nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, acima de R$ 200 milhões, com percentual de garantia equivalente a até 30% do valor inicial do contrato e com a cláusula de retomada (step-in).
O destaque conquistado pelo seguro garantia na lei tem um propósito: reduzir o problema das obras paradas. De acordo com levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), em 2018, existiam 38.412 obras inacabadas financiadas com recursos da União. Mas, o descontrole é tanto em se tratando de obras públicas, que, em 2021, o TCU localizou apenas 27.126 obras paralisadas no banco de dados do governo, ou seja, mais de 11 mil obras sumiram do sistema. Por isso, a nova Lei de Licitações incluiu a possibilidade de exigência do seguro com a cláusula de retomada para as obras de grande vulto.
Por outro lado, o seguro garantia não terá apenas desafios pela frente, mas também a possibilidade de ampliar a sua carteira, caso o governo aumente os investimentos em infraestrutura. Atualmente, o gap de infraestrutura no país equivale a 4,31% do PIB, cerca de R$ 284,4 bilhões por ano. Em 2020, o país investiu apenas R$ 123 bilhões, 1,66% do PIB. Segundo o Ranking de Competitividade Global, o Brasil tem uma das piores infraestruturas entre 141 países, ocupando a 78ª posição. Na América Latina está atrás de países vizinhos, como a Argentina, Uruguai e Chile.
Jorge Sant´Anna, CEO da BMG Seguros, lembra que, desta vez, a União, por meio dos seus diversos instrumentos, principalmente o BNDES, deixa de ser o principal financiador de projetos e concessões. Tal mudança estrutural, segundo ele, cria a necessidade urgente de financiamento privado. Na sua opinião, a infraestrutura é um dos principais gargalos no país. “O desafio do governo para alavancar a infraestrutura é atrair financiamentos e capacidade de resseguro internacional para fazer frente a um programa de investimentos de tamanha amplitude”, diz.
O temido step-in
No mercado de seguros, as discussões que antecederam a nova lei começaram décadas atrás, a partir do Projeto de Lei 1.292/1995. Nos últimos anos, alguns pontos da proposta atingiram consenso no setor, como é o caso do percentual de garantia de até 30%. Havia, então, propostas para a adoção do modelo americano de 100% da garantia, mas a ideia se mostrou inviável para o Brasil. Dentre os motivos, estariam a falta de experiência com o step-in, bem como as limitações da lei, que impedia as seguradoras de contratarem ou subcontratarem para concluir a obra.
Se bem que o step-in não chega a ser uma novidade no país. Segundo Carolina Jardim, superintendente de Garantias da corretora Marsh Brasil, há quase 20 anos esse mecanismo está contemplado nas normas que regulam o seguro garantia no Brasil, funcionando como alternativa para seguradoras se desincumbirem da obrigação de indenizar. “As seguradoras se afastaram dessa forma de indenizar, e isso especialmente em função da insegurança que permeava o instituto do step-in, por causa da possibilidade de ao assumirem a execução do contrato, serem acionada por débitos relacionados ao prestador anterior - notadamente, débitos trabalhistas, fiscais e previdenciários”, diz.
Em artigo publicado no site Conjur, em junho, o advogado Ernesto Tzirulnik explica que as seguradoras tiveram uma experiência negativa, na década de 80, com os seguros de riscos de engenharia e construção. Algumas chegaram a constituir departamentos de engenharia para acompanharem as obras, mas, segundo ele, depois desistiram. Hoje, Tzirulnik duvida que o step-in seja a primeira opção das seguradoras. Ele também não acredita que a Administração Pública encontre seguradora disposta a garantir 30%, mas no máximo 10%. Na sua visão, será mais benéfico para as companhias pagar a indenização do que concluir a obra. “Pagar uma quantia fixa é muito melhor do que assumir responsabilidade de difícil visualização”, diz.
Mais responsabilidades
Transparência sempre esteve em falta nas obras públicas e a Operação Lava Jato trouxe à tona essa situação. Débora Schalch, sócia de Schalch Sociedade de Advogados, cita exemplos de sinistros em que o desequilíbrio era tanto que se fosse possível a seguradora garantir 30% do valor do contrato, ainda assim não seriam suficientes para concluir a obra. “Por falta de controle adequado e, obviamente, por causa da corrupção, obras custavam o triplo do valor previsto”, diz
A advogada se recorda que era comum as companhias liberarem recursos sem a devida contraprestação prevista em contrato. Com a nova lei, ela entende que haverá muitos mecanismos para impedir essa prática. “Ao garantir 30% do contrato, a companhia poderá fazer exigências mais rigorosas, controlando o fluxo do contrato por meio de tecnologia e sistemas”, diz.
Mas, a nova lei também avançou nessa direção, tratando de criar condições para dar mais segurança às seguradoras. Para começar, abriu a possibilidade de a seguradora participar do contrato como interveniente anuente da obra pública e, ainda, conferiu o poder de fiscalização. “A lei não vai solucionar todos os problemas do mercado, mas inegavelmente representa um grande avanço, com segurança jurídica, redução das incertezas e aumento da capacidade de atrair investimento estrangeiro”, diz João Géo Neto, CEO da Pottencial Seguradora.
Para o CEO da Pottencial, as seguradoras, no papel de intervenientes anuentes, podem assumir responsabilidades maiores. “Se antes, elas se limitavam a analisar o risco de crédito do tomador, agora, com a lei, farão uma análise detalhada e técnica de vários fatores que poderiam culminar em uma obra inacabada”, diz. Ele acredita que até mesmo a idoneidade do licitante e do licitado será analisada pela seguradora que, por sua vez, deverá exigir ainda mais transparência do tomador (construtoras) na exposição de dados, informações e números.
Para João Géo Neto, as mudanças resultarão em maior transparência na gestão dos projetos e no fortalecimento do mercado de seguros, que, a seu ver, passará a desempenhar papel fundamental no controle de grandes obras públicas. “Estamos preparados para mergulhar em um universo muito mais amplo do que aquele ao qual nos restringíamos com a lei anterior, quando não era necessário acompanhar a obra”, diz.
Na visão de Jorge Sant´Anna, sem a certeza da execução correta e tempestiva das obras, o financiador privado, especialmente internacional, simplesmente não se comprometerá. A mudança na Lei de Licitações é um início, a seu ver, no entanto, no tocante ao seguro e ao resseguro, considera que evoluções regulatórias adicionais precisam ser implementadas. “Questões como regulamentação do step-in, contrato de contragarantia como instrumento executivo, entre outros ainda precisam ser endereçados”, diz.
As contragarantias também preocupam a superintendente da Marsh Brasil. Para ela, o legislador perdeu a oportunidade de reforçar a Lei de Licitações com dispositivos que corroborassem a liquidez e exequibilidade dos contratos de contragarantia face aos tomadores inadimplentes, sabidamente muito frágeis no Brasil, e a proteção das seguradoras contra sucessão em caso de step-in. “Bastaria aplicar o regramento já construído para a alienação de UPIs (Unidades Produtivas Isoladas) no âmbito de recuperações judiciais”, sugere.
Carolina Jardim observa, ainda, que, no momento, as seguradoras estão avaliando se internalizam ou terceirizam as atividades relacionadas à conclusão de obras. “Parece haver consenso sobre a necessidade de investimentos em ferramentas tecnológicas para a gestão eficiente das informações relacionadas ao monitoramento de projetos”, diz.
Cenário favorável
No âmbito regulatório do seguro, algumas mudanças, como a flexibilização de normas e a extinção da padronização em determinados ramos, podem facilitar o caminho para a expansão do seguro garantia. Para Debora Schalch, as mudanças regulatórias vieram na hora certa. “A flexibilização é muito oportuna, porque as seguradoras, com base na nova Lei de Licitações, poderão realizar contratos sob medida para cada projeto. Estão com a faca e o queijo na mão”, diz.
O CEO da BMG Seguros concorda e aponta outras inovações, como SRO, Open Insurance e até mesmo o PIX, que, a seu ver, tendem a provocar uma revolução na forma como o mercado está estruturado hoje. “Muito ainda tem de ser feito, principalmente no que diz respeito a mudanças regulatórias. No entanto, o movimento é irreversível”, diz Jorge Sant´Anna.
Fonte: Revista APTS Notícias (ed. 138) | Baixe o PDF | Leia online
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