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Responsabilidade civil se antecipa aos novos riscos

No seminário que abordou os riscos complexos, debates em torno da responsabilidade sem danos e do tempo como um bem econômico ressarcível.


No clássico Minority Report, filme dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Cruise, a criminalidade deixa de existir na medida em que o futuro pode ser previsto e os culpados punidos antes mesmo de cometerem ilícitos. Longe da ficção, no campo do direito contemporâneo um conceito semelhante fundamenta a responsabilidade civil sem danos, aquela que imputa o dever de reparar mesmo que o dano não aconteça. A tese, que começa a ser discutida no país, se contrapõe à visão clássica da doutrina que sempre vislumbrou o dano como elemento essencial da responsabilidade civil. O argumento vigente é que se não há dano, não há responsabilidade civil.

Marcos Catalan, professor da Unisinos, no Rio Grande do Sul, enxerga a erosão desses parâmetros e o surgimento de novos paradigmas civis-constitucionais da responsabilidade civil. “No mundo contemporâneo a própria responsabilidade civil lastreada no livre arbítrio de crime e castigo só sobrevive como instrumento de dominação ideológica”, disse ele durante sua participação no “III Seminário de Seguros de Responsabilidade Civil - Riscos Complexos da sociedade pós-moderna, desafios e novos negócios”, promovido pela Escola Nacional de Seguros em abril, em São Paulo, e coordenado pelo especialista em RC, Walter Polido.

Catalan acredita que uma análise crítica do dano na contemporaneidade impõe o caminho da reflexão sobre eventual possibilidade da responsabilidade sem dano. E ele não é o único a pensar assim. Em 2013, a questão foi analisada em encontro de grupos de pesquisa, com a participação de Edson Fachin, hoje ministro do STF, concluindo que, na atualidade, o dano emerge das mais diversas formas. A Carta de Recife, gerada naquele evento, destaca que o dano emerge, atualmente, das mais distintas formas: dano estético, dano biológico, dano emocional, dano pessoal, dano à violação do direito a esquecimento, dano existencial ao projeto de vida, dano de férias frustradas ou abandono afetivo do filho etc.

Nas últimas décadas, o surgimento de novos bens e serviços, como transgênicos, nanotecnologia, multiplicação dos fármacos, acidentes nucleares etc., trouxeram novos riscos. Mas, fora os riscos conhecidos, também existem os desconhecidos, aqueles que no futuro poderão ser atribuídos, por exemplo, às máquinas dotadas de inteligência artificial. Para Catalan, mesmo que esses riscos possam ser calculados, quando se manifestam ofendem direitos mais importantes que o patrimônio. “São riscos que decorrem no presente da necessidade de se antecipar o amanhã. Riscos que sujeitam quem os exerce a fazer o possível e o necessário para evitá-los”, diz.

Por outro lado, a lógica da responsabilidade ainda está ancorada na questão patrimonial. “Trata-se do patrimônio que pode ser reparado, permitindo que se volte ao status quo, que é impossível de ser revisitado porque o tempo que existe é o presente”, diz. Já a responsabilidade sem danos trabalha com mecanismos de reparação antecipada, como, por exemplo, a hipótese de dano ambiental futuro. Catalan cita o caso de empreendimentos, como as mineradoras, que têm sua licença ambiental condicionada a uma caução para eventual reparação da área degradada ao final da atividade.

A responsabilidade sem danos também se aplica, na prática, às situações de expectativa da confiança. Segundo Catalan, o exercício da liberdade não pode ser despido da correlata responsabilidade e atenção com a confiança legitima despertada. “O dever de respeitar a confiança alheia está acoplado ao exercício de liberdade, que há de ser fundida com as responsabilidades que a acompanha”, diz. Ele cita o exemplo dos beneficiários de planos de saúde que têm suas pretensões negadas e, consequentemente, expectativas frustradas.

Catalan não concorda com os mecanismos utilizados para a reparação do dano no âmbito da responsabilidade civil. “Se o dano, pressuposto do dever de reparar, é aquele que aconteceu, que materializou-se, quando trabalho com a dimensão punitiva, educativa e dissuasória para aumentar o quantum, para acrescer um valor, já não estou mais reparando o dano”, diz. Ele afirma que pensa o direito civil como um direito de acesso, sem função punitiva. “Na equação direito e sociedade, essas dimensões que ultrapassam a reparatória implicam em reparação sem dano”, diz.


O tempo como bem econômico

Dentre novos danos tutelados pelo direito, que foram criados a partir do desenvolvimento da sociedade, o advogado capixaba Marcos Dessaune, um dos palestrantes do seminário, destacou o dano decorrente do “Desvio Produtivo do Consumidor” (DPC). Segundo ele, esse novo dano foi identificado pela doutrina em 2011 e, a partir de 2013, começou a ser utilizado pela jurisprudência nacional. Uma das premissas desse novo dano é considerar o tempo como um bem econômico.

“Como as pessoas querem sempre mais tempo do que o quinhão que recebem na vida; logo, o tempo é um bem econômico. Devido às suas características únicas, o tempo é, possivelmente, o bem mais valioso de que cada pessoa dispõe em sua existência, somente comparável à saúde física e mental necessária para gozá-lo”, explica o advogado. Ele também esclarece qual a relação do tempo com esse novo dano. “O DPC é um fato ou evento danoso a que o consumidor carente e vulnerável é induzido pelo fornecedor faltoso, que assim lhe ocasiona um prejuízo de natureza existencial”.

Entre os exemplos de DPC, Dessaune cita, entre outros, a demora na fila de banco; a espera demasiada em consultório médico; o retorno recorrente a uma loja por causa de falhas internas; a espera no aeroporto pelo voo que atrasou; a necessidade de recorrer ao Procon ou à Justiça para exigir um dever legal ou uma obrigação contratual do fornecedor. Nesses casos, os bens ou interesses jurídicos lesionados são o tempo vital, existencial ou produtivo do consumidor e suas atividades existenciais. “Ou seja, a sua existência digna”, diz.

Considerando que o tempo vital tem valor inestimável por ser um bem econômico escasso, que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida, Dessaune conclui que um evento de DPC acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, e que, portanto, é indenizável. “Está equivocada a antiga jurisprudência que sustenta que a via crucis percorrida pelo consumidor, ao enfrentar problemas de consumo criados pelos próprios fornecedores, representa mero dissabor ou aborrecimento e não um dano extrapatrimonial ressarcível”, conclui.


O mercado e os novos riscos

Walter Polido, coordenador acadêmico do “III Seminário de Seguros de Responsabilidade Civil - Riscos Complexos da sociedade pós-moderna, desafios e novos negócios”, analisa a prática do mercado frente aos novos riscos e propõe soluções:


"Diante de tamanha inovação conceitual e propositiva da responsabilidade civil e em face de sua função indenizatória, é necessário que o mercado segurador reveja as bases de atuação nos seguros pertinentes. Atualmente, as apólices estão assentadas em termos e conceitos concebidos em épocas remotas e que não mais condizem com a contemporaneidade. Quando vislumbramos todos esses novos fatores de responsabilização, não conseguimos imaginar a possível inserção deles nos antiquados e limitados termos dos riscos cobertos das apólices RC de modo geral: danos materiais e danos corporais.

O mercado nacional sequer utiliza expressões jurídicas mais abrangentes, assim como danos extrapatrimoniais. Além disso, as seguradoras ainda excluem da cobertura das apólices os danos morais e os danos estéticos, de maneira inconcebível e injustificável, juridicamente falando. Quando oferecem a cobertura de danos morais de forma adicional, apesar de ser sublimitada, a coisa muda um pouco de patamar. Mas, para os danos estéticos sequer existe a oferta adicional, o que demonstra completo atraso tecnológico do mercado.

Esse comportamento encontra-se totalmente desconexo da realidade posta no ordenamento jurídico nacional, o que prejudica, e muito, os consumidores de seguros RC no país. É necessário modificar esta prática e o mercado segurador precisa se engajar nos novos tempos, admitindo a cobertura automática para os novos riscos que se apresentam na sociedade pós-moderna. Tudo passa pela questão de conhecimento, assim como pela estratificação das situações e precificação adequada".


Fonte: Revista APTS Notícias (edição 126) - baixar | ler online

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