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Um superseguro garantia resolve?

Na visão do governo seria a solução para as obras paradas no país e até para a corrupção. Para as seguradoras, entretanto, seria responsabilidade demais.

Atualmente, segundo os Tribunais de Contas dos Estados (TCEs), existem 5 mil obras paralisadas no Brasil. No ano passado, apenas o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) solicitou a paralisação total ou parcial de 61 contratos de construção em 31 rodovias. Diante da grave situação, o governo viu no seguro garantia a solução. Em meados do ano passado, os representantes do setor de seguros foram chamados pelo governo. “Ouvimos que nas obras importantes para o país, em caso de sinistro, não queriam o cheque de indenização, mas a obra pronta”, diz Paulo Pereira dos Santos, presidente da Federação Nacional das Resseguradoras (Fenaber).

Para atender ao pleito do governo, o Legislativo se movimentou. Com o foco na modernização da Lei de Licitações e Contratos 8.666/1993, havia em novembro do ano passado 16 projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, prevendo inúmeras responsabilidades às seguradoras. Entre outras medidas, as propostas legislativas previam o aumento do percentual de garantia do seguro dos atuais 5% para até 100% e a obrigação às companhias de fiscalizarem, auditarem e concluírem as obras paradas, além de assumirem o passivo da construtora.

Embora muitos projetos de lei se baseiem no modelo americano, que garante 100% do valor do projeto, o presidente da Fenaber avalia que no Brasil esse percentual seria impraticável. “O mercado norte-americano opera há 120 anos, possui regras estáveis e o produto garantia está consolidado. Lá, não existe surpresa ao se tentar recuperar o valor indenizado”, diz. Concorda com ele Roque Melo, presidente da Comissão de Riscos de Crédito e Garantia da Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg). “O nosso mercado de garantia tem 20 anos, é adolescente”, diz.

Na interpretação de Debora Schalch, presidente da Comissão de Direito Securitário da OAB-SP, está claro que tais propostas objetivam transferir a responsabilidade do Estado ao setor de seguros. Mas, haveria grande impacto operacional para as seguradoras, que teriam de mudar sua estrutura de subscrição de riscos e seu modus operandi para assumir essa enorme gama de responsabilidade. Para a advogada, a expectativa do Poder Legislativo é criar um “superseguro garantia” capaz, inclusive, de combater a corrupção nos processos licitatórios. “O seguro garantia pode sim ajudar o governo a resolver o problema das obras paradas, mas não é nenhum salvador da pátria”, afirma.

Essa questão foi analisada pela Comissão de Direito Securitário da OAB-SP, em evento realizado no ano passado. De acordo com o presidente da Fenaber, depois de várias reuniões com o governo, o setor de seguros apresentou a sua proposta de consenso. O documento assinado pela Fenaber, pela Federação Nacional dos Corretores de Seguros (Fenacor) e pela FenSeg propunha o patamar de R$ 100 milhões para a contratação obrigatória do seguro garantia para obras públicas e o percentual de garantia de 30% do valor inicial do contrato. Por que 30%? “É o percentual adequado para fazer frente a uma contratação nova e finalizar a obra”, diz Paulo Pereira.

Edmur de Almeida, coordenador da Comissão de Seguro Garantia da Fenacor, destaca o trabalho legislativo das três federações em Brasília. “Com uma agenda em comum, batemos na porta da cada deputado e senador para apresentar a nossa proposta. Na ocasião falava-se até em elevar a linha de corte para R$ 500 milhões”, diz. Mas Edmur acreditava que o senador Fernando Bezerra Coelho, relator do PLS 559/13, estava convencido de que a proposta do setor de seguros era a melhor para o novo seguro garantia.

Porém, no início de dezembro, a aprovação do substitutivo do senador Bezerra frustrou suas expectativas e as de todo o mercado. “Houve um retrocesso”, diz. Segundo Edmur, a palavra “fiscalização” que o senador havia retirado do texto, inexplicavelmente, voltou. Significa que as seguradoras deverão fiscalizar a obra. Mas esta não é a única surpresa. As companhias deverão, de acordo com o PLS 559/13, auditar tecnicamente e contabilmente a obra, assumir o passivo da construtora que quebrou e, ainda, concluir o empreendimento ou arcar com o pagamento de multa ao governo.

“Além de realizar trabalhos que fogem à sua estrutura operacional, a seguradora poderá ser obrigada a indenizar o governo por um valor maior que o prejuízo, o que é vedado pelo Código Civil. Será um tiro no pé do seguro garantia, pois muitas companhias deixarão de operar nessa modalidade e aquelas que ficarem cobrarão mais caro”, diz. Segundo Edmur, o texto aprovado consolidou as demais propostas legislativas no âmbito do Senado e agora dependerá do aval da Câmara dos Deputados. “Vamos reiniciar a via sacra e tentar aprovar emendas para alterar o texto”, diz. No âmbito da Câmara, ele informa que a maioria dos projetos de lei foi apensada ao PL 1242/2015, relatado, atualmente, pelo deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE).


Aumento não resolve

Mas, a aprovação do projeto do Senado não encerra as mudanças no seguro garantia, que ainda é alvo de propostas legislativas. Em relação aos projetos que preveem 100% de garantias públicas, Roque Melo entende que ainda não é o momento. “Para tanto, é necessário que o Judiciário conheça melhor o produto, a jurisprudência evolua e tenhamos alterações normativas e legais para que, então, possamos oferecer ao mercado segurador e ressegurador prerrogativas que já existem no mercado americano”, diz.

Para Debora Schalch, o percentual de garantia de 100% pode não resolver o impasse do atual cenário brasileiro de inadimplemento contratual. “Ocorre que a questão está ligada à falha ou falta de gestão das obras, uma vez que, em sua maioria, o causador da paralisação das obras é o próprio Poder Público”, diz. A advogada destaca que a majoração da garantia contratual poderá impedir a participação de pequenas e médias empresas do certame licitatório, por não conseguirem atingir as condições mínimas exigidas pelas seguradoras para emissão da garantia. “Isso feriria o princípio da igualdade, que determina a competição entre os licitantes de forma igualitária”, diz.

Mesmo no patamar de 30%, Edmur se preocupa com a falta de capacidade dos tomadores para acessar esse limite. “O mercado segurador e ressegurador pode ter uma grande disponibilidade, mas de nada adianta se o tomador não puder ter o seguro”, diz. Outra questão contemplada na proposta do setor é a contragarantia, “que tem se mostrado ineficaz”, segundo Paulo Pereira. “Hoje, o mercado pode levar de dez a 15 anos para recuperar o valor indenizado”, disse. Por isso, a proposta prevê que a contragarantia será assinada pelo tomador e a seguradora no rol de títulos executivos extrajudiciais, conforme artigo 784 do Código de Processo Civil e o artigo 27 do Decreto-Lei 73/66.

Rogério Vergara, coordenador da cátedra de riscos financeiros da Academia Nacional de Seguros e Previdência (ANSP), observa que três leis diferentes contemplam a contratação de obras públicas: Lei 12.462/11; 8.666/93 e a recente 3.303/16. “Não precisamos apenas que o contrato de contragarantia seja transformado em título executivo, mas de uma legislação especifica para seguro garantia, que garanta ao governo a segurança de que a apólice será cumprida”, disse.

Em relação à obrigação de conclusão da obra, como previsto no PLS 559/13, Paulo Pereira afirma que as seguradoras querem ter a liberdade de escolha na contratação da empresa que irá concluir o trabalho. Em caso de paralisação, poderão contratar empresas terceirizadas, inclusive estrangeiras, afastando a necessidade de nova licitação. “Nada mais justo que as seguradoras tenham essa liberdade”, reforça. Ele destaca que a proposta do setor atende ao objetivo do governo de concluir as obras, evitando o desperdício do dinheiro público com a paralisação, além de alavancar o seguro garantia.


Nova realidade

Debora Schalch adverte que as seguradoras precisarão se adaptar à nova realidade. “Se faz necessário o aprimoramento das formas de acompanhamento e gestão dos contratos garantidos, tanto por parte dos segurados como das seguradoras, na tentativa de possibilitar, inclusive, uma ação preventiva das partes envolvidas contra a inadimplência contratual”, diz.

A advogada explica que diante da obrigatoriedade de cumprimento do objeto do contrato às suas expensas e responsabilidade (step in), a seguradora deverá aprimorar os seus processos de subscrição de riscos e acompanhamento dos contratos, fiscalizando desde a qualidade da execução aos preços acertados. “Tudo isso é necessário porque recairá sobre a seguradora o ônus de qualquer deficiência na execução do projeto, ampliando muito o leque de abrangência de suas responsabilidades legais”, diz.

A seu ver, inexiste, atualmente, estrutura jurídica para que uma seguradora possa retomar uma obra. “E mesmo que a tenha de forma contratual, muitos são os obstáculos para que se exerça tal missão devido à nebulosidade consistente dessas prerrogativas e às obrigações que delas podem derivar, tais como a assunção de dívidas deixadas pelo construtor anterior”, diz. Com a implementação do “step in rights”, a advogada considera necessário delimitar as obrigações da seguradora, isentando-a da responsabilidade de possíveis débitos do tomador inadimplente (trabalhistas, fiscais, previdenciários, ambiental e construtivos).


Mais mudanças no garantia

Outras propostas legislativas preveem alterações profundas no seguro garantia. Este é o caso do PLS 274/2016 de autoria do senador Cássio Cunha Lima, que aguarda a designação de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal. O projeto torna o seguro obrigatório para contratos públicos de valor global igual ou superior a R$10 milhões, impõe o percentual de garantia de 100% e o dever da seguradora de retomar a obra.

De acordo com a proposta, a emissão da apólice estará condicionada à aprovação do projeto executivo pela seguradora. A execução do contrato passaria a ser acompanhada e fiscalizada livremente por representante da seguradora. O projeto também dispõe sobre a regulação de sinistros e execução das apólices. Há, inclusive, a previsão de início do processo de regulação sem comunicação formal de sinistro pelo segurado, em caso de inadimplemento do tomador.

E, ainda, define o sinistro tanto como o inadimplemento do contrato, seja em caso de inexecução parcial ou total, como a rejeição da obra ou serviço pelo poder público, por considerá-lo em desacordo com o contrato. Havendo cobertura, a seguradora poderá (i) contratar outra empresa para concluir o contrato, (ii) assumir a execução da parcela restante com mão de obra própria ou terceiros contratados ou (iii) financiar o tomador inadimplente para concluir a obra no prazo.

Em contrapartida, o segurado deverá ratificar as conclusões e medidas da seguradora. Caso contrário, a obra não será retomada e a seguradora será obrigada a indenizar o segurado. Inspirado no modelo norte-americano Miller Act, o projeto defende que a contratação pública somente será eficiente mediante a adoção de um sistema abrangente de seguro garantia que possa assegurar o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelas empresas privadas ao contratar com o Estado. (com informações da Schalch Sociedade de Advogados)

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